A auto-ficção de Chico Buarque e Rita Lee
Fenômeno da literatura contemporânea chega aos escritos da música popular brasileira
Olá, tudo bem?
Nos últimos dias, chegaram dois livros pelos quais eu estava muito ansioso: Bambino a Roma, de Chico Buarque, e O mito do mito, de Rita Lee. Comprei na pré-venda há meses, mal chegaram e eu já os devorei no mesmo dia. Além da coincidência de datas de lançamento, há outra mais importante: ambos se auto-intitulam “ficção”, mas são auto-ficções, seguindo o gênero que é um dos principais fenômenos da literatura contemporânea a nível mundial - e tenho cá eu meus dois dedos de prosa para compartilhar com vocês.
Falemos, primeiramente, de Chico Buarque.
Um dos medalhões da música popular brasileira, Chico não se contentou apenas com o ofício de ser um excelente músico-compositor e, para a nossa alegria, nos presenteou com vários livros de Literatura com “L” maiúsculo, como Estorvo, Leite derramado e O irmão alemão. Agora, após ter lançado um livro de contos, Anos de chumbo (2021), ele lança Bambino a Roma.
Há uma frase da poeta Louise Glück que diz: “Nós olhamos para o mundo uma vez, quando crianças. O resto é memória”. Sem se refugiar em um pseudônimo, tampouco esconder o contexto sócio-político-econômico que levou sua família a Roma, Chico Buarque narra parte da sua infância, quando passou dois anos em Roma acompanhando a família.
Entre os fios da memória que por vezes o enganam e o que ele preenche com a sua inventividade, ele faz um relato afetivo que percorre os caminhos da sua primeva formação, como os traçados tortuosos de Roma que o levaram às suas primeiras paixões. É um relato rico de palavras e sabores que só Chico pode nos dar.
Por sua vez, O mito do mito, livro de Rita Lee escrito há tempos mas só lançado post-mortem a pedido da própria artista, caminha pelo humor que sempre lhe foi típico. O enredo se passa em apenas um tempo-espaço: um consultório sombrio em que estão a cantora atormentada, o médico-louco e a irmã da cantora que acompanha no ponto eletrônico a consulta que vara a madrugada. (Essa estrutura, aliás, tem tudo para virar peça de teatro - e das boas!).
No diálogo que se estabelece, a personagem principal compartilha lembranças e reflexões sobre a vida de artista e de fã. Se são verdadeiros ou não os casos e os causos, talvez isso não tenha tanta importância. Porém, para quem leu sua auto-biografia, os relatos têm um fundo de verdade, pois há paralelos e recorrências em ambas as obras, mesmo que na ficção por vezes eles surjam de maneira cifrada.
No início do livro, há um reforço da autora/cantora: é tudo ficção. Mas sabemos que ali temos Rita Lee na sua melhor forma, usando da capa da ficção para livremente falar sobre assuntos que poderiam lhe render processos ou mal-entendidos, sempre com a benção do humor para desafrouxar a seriedade. Assim outrora Rita Lee dobrou a censura da ditadura, assim dribla a hipocrisia que poderia cercear seu pensamento livre.
Enquanto na literatura, o gênero da auto-ficção, que tem grandes obras-primas como os livros de Annie Ernaux e Édouard Louis, começa a dar sinais de desgaste, pelo excesso de realidade e de crença narcísica de que a experiência pessoal é o que há de mais importante, Rita Lee e Chico Buarque usam da ficção para navegar pela linha tênue entre a verdade sobre si e a fabulação, como quem nos pergunta: quem não há de concordar que a verdade também não tem seu status de fábula? E que toda lenda é pura verdade? Música é feitiço.
Não é inscrito? Pois, por favor…
Difícil dizer qual dos livros deu mais vontade de ler